23.9.06

Génesis

"Todos nós temos um pai e uma mãe, quatro avós, oito bisavós, dezesseis tataravôs e assim por diante. Se você chegar por exemplo ao ano de 1349, vai chegar a um número bem grande. Então veio a peste. A morte rondava os povoados, um a um, e as crianças eram suas maiores vítimas. Em algumas famílias morreram todas as crianças; em outras, uma ou duas conseguiram sobreviver. Naquela época, muitas centenas de seus antepassados eram crianças. E nenhum deles morreu. Como se sabe com certeza disto? Simples: só o fato de estar lendo isso agora, prova isto. Pois se apenas um de seus antepassados tivesse morrido criança, ele ou ela não poderia ter sido seu antepassado. A probabilidade de nenhum de nossos antepassados ter morrido ainda criança era uma para muitos biliões. Pois não é só a peste que conta. Todos os nossos antepassados cresceram e tiveram filhos em épocas que foram palco das mais terríveis catástrofes naturais, e que, além do mais, possuíam índices assustadores de mortalidade infantil. Assim, por algumas centenas de biliões de vezes, estivemos a um milímetro da morte. Nossa vida foi ameaçada por insectos e animais selvagens, meteoros e raios, doenças e guerras, enchentes e incêndios, envenenamentos e tentativas de assassinato. Só na Guerra dos Trinta Anos você deve ter se ferido muitas centenas de vezes, pois você deve ter tido antepassados em ambos os lados. No fundo, travamos uma guerra contra nós mesmos e contra nossas possibilidades de nascer três séculos mais tarde. E o mesmo vale para outras guerras. Toda vez que uma seta cortou os ares sibilando, as chances de você nascer foram reduzidas ao mínimo. É uma única e longa cadeia de acasos. E esta cadeia pode ser acompanhada até chegarmos a primeira célula viva que se dividiu e deu o pontapé inicial para tudo que cresce hoje em dia no planeta. A probabilidade de que a minha cadeia não se interrompeu em algum ponto do passado ao longo de três ou quatro biliões de anos é tão pequena que quase não é possível imaginá-la. Mas eu consegui chegar até aqui. Eu sei que sorte eu tive para poder desfrutar deste planeta. E quem não teve esta sorte? Eles simplesmente não existem. Nunca nasceram. A vida é uma lotaria gigante, da qual só se vêem os ganhadores. Súbito me senti infinitamente triste por todos nós, seres humanos, que acabamos nos acostumando com uma coisa tão incrível, tão imperscrutável como a vida. Um belo dia acabamos achando evidente o fato de existirmos e então......bem, só então voltamos a pensar que um dia teremos de deixar este mundo." "O Dia do Coringa", de Jostein Gaardner.

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